Três encontros com as nossas inquietudes

Tive três encontros com o filme. O primeiro encontro foi sem o filme. Não tinha possibilidade de assistir, Marcela Antelo me deu o texto. E o li. E foi um efeito estranho; porque ao lê-lo era como se fosse um narrador só. Tive a impressão viva de que era uma narração entre vários. Como uma grande conversação feita um por um. Que é um pouco o paradigma da época. As narrações se constroem entre vários; porém, as narrações guardam singularidades.

O segundo encontro com o filme foi ontem. Marcela Antelo me deixou no hotel uma copia do filme e fiquei com muita curiosidade de saber quem eram os que falavam. Então foi um encontro entre a palavra escrita e os personagens, e as pessoas. As palavras estão encarnadas em corpos. As palavras não circulam sozinhas senão que pertencem a corpos que se mexem, que se deslocam, que têm vozes, que têm gestos. E tive o encontro entre as palavras e os corpos.

A terceira oportunidade para assistir ao filme foi hoje, com vocês. E aí tive a oportunidade de dar um passo a mais. Já não era a narração como um coro grego de uma cacofonia de vozes. Um grande coro que vai falando e vai prestando desde suas pequenas singularidades a idéia do que é uma análise desde o começo ao fim; senão que descobri pequenos detalhes. Já conhecia o texto. Já sabia quem falava; mas, descobri a cozinha, os copos que estão nas prateleiras, os livros. Os diferentes jardins. Descobri detalhes que não são menos importantes do que as vidas encarnadas em corpos, porque eles pertencem a nossas cotidianidades.

Então, a primeira lição do filme para mim foi que não há um universal da análise. Que a narração entre vários nos dá uma idéia de que as análises começam de diferentes modos, se desenvolvem de acordo a cada sujeito e seus finais são múltiplos. É uma seqüência que nos ensina que não há uma análise estandar; que não há um universal de uma análise nem como analisar-se. Marcela (Antelo) me dizia ontem, contra Freud, dar testemunho. Dar testemunho de que as análises existem de muitos modos, para cada um. De acordo a seu ‘tempo’. De acordo a seu sentimento do tempo e a sua possibilidade de ouvir-se; com diferentes alternativas; com escansões; com esquecimentos; com diferentes relações com as palavras.

Quando assisti ao filme pela primeira vez me impressionou ver o vazio dos quartos. Esses primeiros planos de janelas, de quartos sem móveis. Havia uma oposição entre o vazio desses espaços e o pleno das palavras. O pleno das palavras que na medida em que os narradores as iam desenvolvendo; iam tomando cada vez mais corpo. Iam personificando-se.

Há um livro de Raimond Queneau onde ele começa falando de um personagem. Há uma multidão numa estação de trem, em preto e branco; e na medida em que vai dando detalhes, vai tomando cor, vai tomando um nome, vai tomando um corpo. O filme nos produz esta familiaridade; onde tudo transcorre nos vazios dos quartos, com janelas, com pequenos movimentos.

E na medida em que vão transcorrendo as narrações, as análises com pequenos detalhes; o final conclui com pessoas que são quase próximas. Onde não sabemos muito deles, mas, o suficiente como para sabermos do efeito que teve para cada um deles as análises.

Então, a primeira pergunta é que é uma psicanálise? É exatamente isto. Palavras encarnadas em corpos. Sofrimento encarnado por sujeitos e, como dizia Lacan, são vidas que se confessam.

Quando lhe perguntaram numas conferências americanas o que é uma análise; ele diz é a demanda que parte de um sujeito, da voz de um sujeito. É a voz de cada um deles fazendo-nos participes de seu sofrimento. Isso é uma análise. Nem mais nem menos.

Nós como espectadores do filme nos convertemos em receptáculo desses sofrimentos. Porque é particular. O grande ausente desse filme é o analista. A câmera captura essa voz, essa narração dos protagonistas; e depois que filmou essa narração, que fez as perguntas, desaparece. É um efeito paradoxal porque somos nós os que ficamos frente a frente com elas, ouvindo suas narrações. Como no carro, ficamos detrás deles; como nas análises quando alguém se estende sobre um divã; ouvindo suas narrações.

O grande ausente, por mais que falem, são os analistas. Porém, nós mesmos, os espectadores; faz-nos passar a experiência de estar perante alguém, um sujeito que apresenta seu sofrimento e nos o empresta.

É o mais próximo do que se pode levar da transmissão para uma pessoa que não conhece o que é uma análise. É esta experiência de estar perante alguém que confessa seu sofrimento, sua vida perante vocês. Então, me parece uma torção moebiana muito particular, o modo como esta diretora captura esta experiência.

Por que. Porque consultar? E novamente temos seis vozes. Pelo luto pelo pai morto, que se transforma numa dificuldade para falar. Pela impossibilidade de se levantar. E esses sonhos cheios de cadáveres. E pala crise de conversão histérica e a impossibilidade de falar daquilo. E a fantasia sexual. E finalmente a morte do irmão. Por uma escolha sexual que não responde às regras; que não responde ao chamado do pai. Pela doença do irmão. Ou um sujeito que começa totalmente neutro, um sujeito feminino, a mais nova, onde é absolutamente descritivo seu modo de apresentar e termina falando do enigma de sua feminilidade. De sua relação com o corpo.

E como o fazem? Como falam disto? Como o desenvolvem?

Vão dando-nos amostras, aos poucos, do que sucede numa análise. Esta mistura de acaso e destino. Estas contingências que se vão involucrando nestes relatos, nestas narrações de suas próprias vidas; estas pontuações que recebem nas sessões; estas narrações não são alheias. Este é o artifício do filme mostrar que poderiam falar perante uma câmera. Porque, na verdade, estas narrações involucram os corpos dos que falam e involucram também a presença do analista.

Não é sem analista. São narrações sob transferência. Com esta experiência de amor. Porque não dizer que também é uma experiência amorosa? Com um tempo que é diferente para cada um. Quando um dos sujeitos diz, poderia ter falado de entrada, mas, se o tivesse feito teria me suicidado. Não teria suportado a culpa.

Porque é isso. A análise não é um interrogatório. Não se trataria de saber a verdade sobre a verdade. Trata-se de que é um tempo subjetivo, pessoal, de regimento do ser. Um tempo parcial de ser. Um tempo para poder dizer sem morrer de culpa. Um tempo para achar as boas palavras. Um tempo para perder-se; para faltar à sessões; para esquecer das sessões; para voltar a achalas. Um tempo para saber-se não mais doente e simplesmente desejar falar para saber algo mais.

Para dizer algo a respeito dessas vidas encarnadas em corpos. Dormiam se. Esqueciam se. Não lhe queriam, quando a analista lhe diz que não está doente e ela chora e lhe pergunta por que chora e ela experimentava que a deixava cair; quer dizer que não a queria, que o choro era uma demanda de amor.

Tudo isso acontece sobre o que chamamos transferência. Dizendo, um analista encarna a soma de todas as singularidades, de todas as narrações, porém, para cada uma encarna o mais intimo. Para um seria a voz de quem o ame. Para outro será o saber sobre crianças e por isso poderá recebê-lo, porque ele poderá falar de sua própria infância. Para outro será o que a deixa cair, que não responde a sua demanda de amor.

Cada um constrói seu analista na transferência. Constrói seu objeto a quem dirigir seu sofrimento, tentando achar as boas palavras que sempre faltam para dizer o impossível de dizer; para tropeçar em seus laços; para dizer o que não queriam dizer; para dizer que em Valéria está tudo o vale de arroz que se pode achar e que impede que algo possa ser dito. Para dizer que há uma divida que se desconhecia e que se diz mais além das palavras.

E como termina isto?

Temos novamente seis vozes para falar dos desfechos. Eu não percebi quando o li. Eu não percebi quando assisti pela primeira vez. E hoje, ao assistir pela segunda vez, percebi que não todos terminam. E foi uma surpresa. Um dos sujeitos fala que espera poder achar suas palavras. Ele está em análise. Não todos os protagonistas concluíram suas análises.

Aquele que não podia aproximar-se a Natalie ao lado do mar segue buscando mais um pouco para conseguir dizer algo. A mulher racional, busca algumas palavras mais para falar de seu problema e relação a sua feminilidade.. A mulher que consulta pelo irmão e derrama todas as lágrimas que podia derramar rios de lágrimas. E não pôde chorar em sua infância. Poderíamos nos perguntar por que as crianças não podem chorar? Esse entorno, a vida que lhes toca viver é real. Não há choro para alguns e ela pode achar onde esse choro possa ser acolhido. E sua conclusão é que a analise lhe permite ter certa liberdade de pensamento. Nada diz do decurso de sua relação com a análise, porém, pode pensar com mais liberdade. Já não fica prisioneira de seu destino.

Aquele que não podia falar de suas lembranças de guerra, conta – é o único que fala o nome do analista, um psicanalista francês, mostra como é necessário pagar por essas palavras. O vemos às escuras, num rincão. Diz que não concluiu totalmente de elaborar sua relação com a guerra. Há um resto; ou seja, ouve toda essa experiência do analista, que fazia à vezes de dormir-se, de desinteressar-se, de introduzir a queda desse excesso de sentido; mas, ouve um resto que não fica elaborado, que não fica dito e que é tanto melhor assim. É a análise onde algo permanece como não dito como aquilo que é impossível de dizer e que talvez para esse sujeito é melhor que não seja dito mais nada. É melhor que tenha perdido seu sentido, que tenha esquecido, que não tenha vontade de continuar falando.

Outro dos sujeitos, aquele que quando começou tinha essa desesperança, onde era quase um suicídio social pela perda de seu trabalho, onde teve que reconciliar-se com sua escolha homossexual; termina dizendo que finalmente esse analista que era todo-poderoso para ele, termina sendo mais um com quem conversar. Nesse momento perde o sentido; já não tem mais interesse falar com ele. Cai o lugar transferencial mais não cai o efeito subjetivo de haver atravessado uma análise. Isso é seu e não depende da presença do analista. Ele se desprende do analista, mas não se desprende do ganho subjetivo que teve sobre ele atravessar pela experiência analítica.

E finalmente, a ultima das protagonistas, a que sonhava com cadáveres e ondas que a cobriam, e que a análise muda seu inconsciente. Porque todos eles têm este recorte particular da diretora. Mostra o trabalho do inconsciente. Dá mostras da existência do inconsciente e como a ação analítica muda as formações do inconsciente. E com a interpretação do analista quando diz que são somente sonhos e a faz despojar-se dessa idéia de que tinha que ter um estilo de gozo perante estes pesadelos que a perseguiam. É ela a que diz que finalmente a análise foi atravessar o horror; e uma vez que se atravessa, já está.

O já está com que conclui o filme é nem bem nem mal.. É isto; e com isso conclui a análise; e com isso conclui o filme.

* Publicado en Agente digital 6, Bahia, Brasil (2009).