Apresentação de Paul Guiraud

A autopunição que cura Aimée tem como ponto de partida a passagem ao ato. Ela consegue se “autopunir” quando se dá conta de que tentara matar uma pessoa inocente. A questão do assassinato na psicose, objeto da tese de Lacan, tem uma história na psiquiatria francesa. Nos anos vinte a psiquiatria francesa ocupou-se sobretudo da distinção entre os delirantes passionais e os passionais puros, aqueles cujos crimes tem um motivo. Guiraud liberou-se dessa distinção escrevendo uma série de artigos sobre a dinâmica dos crimes sem motivos: primeiramente com Cailleux, em 1928, “O assassinato imotivado, reação liberadora, nos hebefrênicos” (Ann. Méd. Psych.), depois em 1931, “Os assassinatos imotivados”.

O que caracteriza os dois artigos é não estarem implicados nas questões da responsabilidade penal e da pena, privilegiadas na relação da justiça com a psiquiatria. Entretanto, o trabalho de Guiraud se inscreve no esforço suscitado por Alexander e Staub em Berlim (1922) e por Marie Bonaparte na França (1931), esforço inclinado a relacionar psicanálise com as análises criminológicas.

Em artigo de 1928 os autores pontuam a aparente incoerência desses crimes em certos casos, na medida em que se distinguem da premeditação do perseguido ou da impulsividade do demente. Guiraud e Cailleux concluem que “a reação violenta aparece assim como o último sobressalto de energia de um organismo que se anula na indiferença e na falta de ação” e como resultado da transferência do desejo de “curar a doença” sobre o de “suprimir o mal social”. Mas essas violências sem motivo não carecem de causa: “o esforço de liberação contra a doença transporta patologicamente para o mundo exterior”.

O termo kakon, que é utilizado no segundo artigo de Guiraud, está presente já no primeiro trabalho, a través do postulado de uma ação liberadora do mal.

Em 1931 Guiraud retomou um dos casos estudados em 1928, o caso Paul, e ressaltou querer eliminar o termo kakon situando-o como advindo de Monakow e Mourgue (termo grego utilizado em seu livro Introduction biologique à l’étude de la neurologie et de la psychoáthologie, em 1928, significando “desgraça”; “perigo”). Segundo Guiraud kakon traduz um sentimento desagradável, um sentimento penoso, de estranheza interior, de inquietude, que invade o doente fazendo-o querer livrar dele. Pelo assassinato o doente tentaria atingir a doença objetivada.

Apesar de Guiraud atribuir a etiopatogênia a distúrbios cinestésicos e vegetativos, concepção criticada por Lacan, este o retoma para explicar a passagem ao ato de Aimée, que se aproxima do mecanismo liberador. Analisa-o então em termos de agressão simbólica, onde o doente tenta matar sua doença, o mal, o kakon, mal-estar inexprimível pelo qual o pacienta tenta se livrar. Lacan pontua a maneira como Guiraud coloca em evidência, nos assassinatos sem motivos ou crimes do Si mesmo, a agressão simbólica, “(…) o sujeito aí quer matar não mais o próprio eu ou seu supereu, mas sua doença ou mais freqüentemente, o “mal” o kakon de Monakow e Mourgue” (p. 302)

Por outro lado, Lacan interessa-se em sua tese particularmente pela distinção que faz Guiraud entre o crime do eu e crime do Si mesmo. Entre os dois tipos de crimes, Lacan inclui os crimes do supereu, próprios dos delírios por querelas e dos delírios de auto-punição.

A passagem ao ato de Aimée aproxima-se do mecanismo liberador, “ela realiza a violência fatal sobre a pessoa irresponsável, é preciso ver aí o símbolo do “inimigo interior”, da própria doença da personalidade” (p. 237). Mas Lacan vai além das análises parciais de Guiraud indicando a maneira como para Aimée o inimigo interior é especular e fica no domínio do imaginário, enquanto as tendências autopunitivas intervêm: batendo em alguém como ela consegue bater em si mesma.

O termo kakon será retomado por Lacan várias vezes. Em “L’agressivité em psychoanalyse”, referindo-se a reações agressivas na psicose, fala do “kakon obscuro, motivo para o paranóide expressar sua discordância a qualquer contato vital…” (Écrits, p. 110). Também quando comenta a primordialidade da posição depressiva para Melanie Klein, ressaltando “o extremo arcaísmo as subjetivação de um kakon“, religando-a “à primeira formação do supereu” (p. 115).

Aborda novamente o assunto em “Propos su la causalité psychique”, opondo Guiraud a Henry Ey; e assim escreve: “Quão longe vai um Guiraud, mecanicista, quando no seu artigo sobre os “Assassinatos Imotivados” se dedica a reconhecer que o alienado não procura no objeto que atinge nada além do kakon de seu próprio ser” (Écrits, p. 175).

Numa intervenção na S.S.O., comentando uma apresentação de Schiff, Lacan declara que o kakon é, às vezes, compreensível, mas, nem sempre. Na psicose “a agressão toma a significação de um esforço em romper o círculo mágico, a opressão do mundo exterior” (Ornicar? n° 31, p. 10).

Jacques-Alain Miller permitiu-nos precisar o sentido do enigmático kakon utilizado por Lacan nos seus primeiros trabalhos, indicando o valor de mais-de-gozar. O kakon é então o objeto extimo; o objeto atingido é o ser mais íntimo do sujeito.

* Publicado en Opçao Lacaniana 9, San Pablo (1994), pp. 85-86.